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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O olho da lupa [108]

 


Acreditamos que há sempre,
algures,
uma cândida lupa que nos espia,
apesar de nos esquecermos de tal sentinela
(de contrário,
sentimos um frio na espinha que nos impõe
uma pose mais favorável).
Acreditamos, até,
que há uma sapiência omnipresente
no labirinto onde todos
nos podemos perder,
ao ponto de pensarmos
que os obstáculos são provações
deliberadas pelo olho da lupa.
E nós, vindos do pó
e que ao pó havemos de voltar,
fazemos de conta
que não somos apenas passarinhos reclusos
que gostam de cantar
engaiolados no espaço de penas
e no tempo carcereiro.
Fingimo-nos eternos,
enganamo-nos vivos,
e até inventámos
que o inverso não pode ser verdadeiro.


      Jaime Portela


quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Somos Deuses [107]

 


Procuramos o ideal atolados em pântanos,
somos árvores perdidas a triturar
verdades escuras que adubam o chão
por onde se passeiam as raízes que nos sustentam.

Apascentamos a alma e engordamos a razão
num choro sereno,
imploramos que os braços se tornem frondosos
e abarquem um céu sempre azul,
filtrado das chuvas ácidas
que teimam em irrigar com prantos negros
as impotências da vida.

Esgravatamos as entranhas do saber
para encontrarmos o sílex do desejo,
dissolvemo-nos na pirólise de maciços rochosos
que embargam horizontes,
percorremos o mapa do querer em nascentes de força
que devorem o húmus indeclinável.

Somos Deuses,
fazemos milagres para que a seiva chegue aos frutos
que queremos ao sol,
suspensos à sombra dos nossos ramos.


       Jaime Portela

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O cetim inextinguível dos teus beijos [106]


 

Correr para ti, na medida em que te falto,
é um sentir renascido
que germina oculto na sementeira dos sentidos,
é um silêncio
que se esmaga atroador no grito que detenho,
é um sonho que se furta indomável
ao sono em que perduro acordado,
longe do vento e do pranto.

Fugir de ti na medida em que te abraço,
é uma louca galopada
que mergulha nas marés do teu desejo cavado,
é um rasgar
da carta negra de intenções em desertar,
é um canto profundo
na lava que nos veste em fragores de rouquidão.

Vences-me sempre: mesmo esvaído em desejos,
despojas-me uma e outra vez
com o cetim inextinguível dos teus beijos.


       Jaime Portela

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Há paredes escondidas no teu peito [105]


 

Há paredes escondidas no teu peito
que se erguem
[estremunhadas]
cada vez que o riso dorme.

Há um mar que se arpoa no teu leito
à pesca de recatos
nos tapumes insulados em lençóis,
cada vez que o sol inteiro
se rende ao azul do teu sorriso.

Com o perfume do teu mar,
estou a pintar portas e janelas
nas paredes que nos separam
[pudibundas],
para que o azul se liquefaça
no sol da tua alma
de ferrolhos e cortinas despojada.


       Jaime Portela