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segunda-feira, 18 de março de 2024

O tempo [552]

 


O tempo deveria ser diferente

e não caminhar sempre em frente

sem olhar para onde vai.

Poderia ter curvas e contracurvas

e até marcha atrás de vez em quando.

Também gostaria

que as noites não fossem escuras

e que tivessem sempre a lua cheia

com o triplo da luz

(o que se poupava em iluminação pública).

Seria bom, também,

que as guerras fossem proibidas,

que ninguém passasse fome nem frio

e que a verdade fosse a única opção.

Mas a vida segue o seu curso

e sabe a sonho e a pedra,

a ternura e a desamor,

a sucesso e a desgraça,

a esperança e a desespero,

a paz e a guerra.

O tempo arrasta-nos,

empurra-nos,

ilude-nos

e alaga-nos em remoinhos de lodo.

Envelhece-nos e mata-nos a todos.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 11 de março de 2024

Cartas de amor [551]

 


O balde está quase cheio e o cheiro,

nauseabundo,

dorme na minha insónia como se fosse uma faca

a perfurar-me os miolos.

Ontem sujei os dedos e não havia jornal.

Limpei-os à parede.

Não tinha alternativa,

queria escrever-te com as mãos limpas,

mas levei dois pontapés

para aprender a ser limpo e educado.

Hoje deviam louvar-me,

despejei o balde para o chão, civilizadamente,

e enfiei-o na minha cabeça.

Perceberam a mensagem,

levaram-me ao psicólogo

e respirei ar quase puro durante uma hora

a explicar-lhe que eu era um preso político.

De volta à cela, passei ao nível 2:

despejei o balde em cima do guarda.

Depois disso,

fiquei sem mais vidas para gastar:

acorrentaram-me, sem balde, na solitária,

e apreenderam as nossas cartas de amor.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 4 de março de 2024

Eram prenúncios de céu [550]

 


Eram prenúncios de céu

os mistérios que me chegavam

envoltos em nevoeiros a esconder

o teu exato desígnio amuralhado.

Vidente,

percebi nos teus dissimulados gestos

o contrário da indiferença,

rompi o nevoeiro

e demoli a muralha,

que afinal eram tão frágeis.

Agora que te vejo claramente,

conheço o teu sangue,

o teu âmago

e todas as vias

onde podemos alargar sem mistérios

os nossos supremos voos até ao céu.

Lá no alto,

vou largar-te  e vais cair desamparada

porque sou um predador de um só voo.

 

© Jaime Portela, Março de 2024


segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Mesmo a dormir [549]

 


Mesmo a dormir, não durmo,

grita o desassossego de vidro riscado

a rasgar o núcleo do corpo

onde existia a ventura.

Destruo e reconstruo as molas do desacerto,

lavo as dores com as marcas dos dentes

enterrados no dorso

e vou matando os vírus que crescem no teu vazio.

Restauro o propósito,

sempre escasso,

para a travessia dos dias e da distância

que me separam de ti.

Mais de mil vezes teimando,

qual suplício de Tântalo,

recolho cacos, perfumo a dor

e crio novas pontes de concertação,

que vão caindo,

uma a uma,

pelo teu estado sem planos de salvação.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A corda na garganta [548]

 


Pelas palavras,

sinto um desamor exagerado.

Elas raramente relatam fielmente o pavor,

a demência ou a emoção.

Não tenho palavras para a tua ausência,

há uma muralha

que a minha caneta não derrota.

A tinta torna-se permanente e invisível.

 

Não tinha palavras para a tua ausência,

mas voltaste e emanas a luz que faltava.

E as palavras regressam alegres

quando acendo o teu corpo e a noite se apaga.

Mas o temor de fugires

é uma corda que me aperta na garganta

e só respiro quando me estrangulas

com o teu corpo aceso de amor.

 

                © Jaime Portela, Fevereiro de 2024

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Alegre e triste noite de Carnaval [547]

 


Como se algas

me segurassem as pernas abertas

e a luz de um farol

me perfurasse como cem agulhas

que persistia

num formigueiro à flor da pele,

vi-me deitada numa passadeira vermelha

de um bar sem janelas

para onde me tinham atirado.

Nada sabia sobre as mãos que me feriam

e me dissolviam a força para resistir,

nem das pancadas da música

a pulsar em sintonia diversa do coração.

Tenho somente este corpo,

esta alma,

que não sabem dar-se quando não há amor,

uma fé que apenas resiste

quando acredita no próximo.

Nada sabia,

mas depois de ter sido abusada,

violada sem dó nem piedade

numa alegre e triste noite de carnaval,

fiquei a saber que há mãos

que assassinam a fé e o amor.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Há palavras [546]

 


Há palavras

que se perdem engolidas pelo tino,

não vá o diabo tecê-las

devolvendo-as em borbotões azedados.

Se delas nada se ganha,

é inútil lançá-las à cara do vento,

afrontosas,

na esperança de tecer abraços

quando a tempestade se agiganta.

A sensatez nas palavras

é uma raiz viva que nos permite sobreviver

nos declives escorregadios do instinto

ou da desordem sem retorno.

Fujamos das palavras imprudentes,

ditas frontais,

onde os olhares se esbanjam,

de soslaio, num horizonte sem luz

de palavras feridas por excesso

ou por gritos inúteis sem ensaio.

 

© Jaime Portela, Fevereiro de 2024


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Na procura [545]

 


Na procura da volúpia

e de momentos cálidos

nas imersões no teu rio,

enganei-me, a sensação foi gelada,

de arrepios.

 

Sei que era onde habitavas,

desde sempre,

só não sei por que razão

procurei o polo norte

que tinhas dentro de ti.

 

Mas não me lamento,

porque o espanto faz parte

do universo do impensado

e só é um grande atropelo

para os que bem organizam a vida.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Amor de perdição [544]

 


É um néctar

o perfume que anima a tua casta

e que ornamenta a tua alma.

Saboreio-te

para melhor ver as estrelas

ou o rio que serpenteia

por entre os socalcos do vale.

És sumo quase proibido de um fruto

que bebo para sentir

todos os segredos de que preciso

para cair e escrever sem me magoar.

Se eu fosse um Deus,

construía-te uma cidade

como a que fizeram para Afrodite.

Mas o teu Deus, não,

Baco tentou impedir

a chegada das caravelas à Índia

e o rubor etílico dos marinheiros

é prova disso.

Verde ou maduro,

branco ou tinto,

tanto faz, és um amor de perdição

desde que nasceste

na oferenda da fermentação.

 

© Jaime Portela, Janeiro de 2024